Clara Azevedo, João Bénard da Costa, Expresso - A Revista, 1 de Dezembro de 1990.
Foi com grande regozijo que deparei (stumbled, diria no blogue The Hooded Utilitarian) com o volume três de Crónicas: Imagens Proféticas e Outras de João Bénard da Costa. Quando a editora dos dois primeiros volumes, a Assírio e Alvim, de boa memória, foi vendida à Porto Editora perdi toda a esperança de ver mais crónicas de João Bénard da Costa reeditadas (e isto apesar deste conto infantil). Eppur... parece que há milagres, afinal... A Sistema Solar, editora de que nunca tinha ouvido falar, resolveu continuar a colecção da Assírio (compilação de crónicas de 2006).
João Bénard da Costa foi, intelectulmente, e de longe, a pessoa mais importante para mim. Importante porque lhe devo anos inesquecíveis enquanto frequentador assíduo da Cinemateca Portuguesa (isto nos já muito idos inícios dos anos de 1980), Importante porque lhe admirei, a par da de Erwin Panofsky, a incomensurável erudição (ou alguém acredita que se ganhou alguma coisa quando se substitiu a cultura clássica pela cultura masscult norte-americana?). Importante pela sua prosa camoniana (ou deveria antes dizer "vieiriana"?) e concetista (não é debalde que João Bénard da Costa admirava o barroco italiano), prosa essa que nunca poderia imitar porque, por um lado, o meu domínio da língua é muito limitado e porque, por outro, os meus textos mais importantes foram escritos em inglês, língua que ainda domino menos. Importante, finalmente (será?), pelo crítico que João Bénard da Costa não foi, para empregar um dos paradoxos que lhe eram caros. Os textos de João Bénard da Costa não são crítica no sentido ortodoxo do termo (no sentido que empregaríamos em relação a David Bordwell, por exemplo), mas são, com certeza, crítica no sentido mais nobre da palavra: pelo seu crivo rigorosíssimo e pelo seu entendimento dos meandros do humano espelhados nas obras. Se é isso que lhe podemos objectar nestes tempos de politicamente correcto, anti-humanismo e antiessencialismo (tudo doutrinas que também professo), é precisamente essa subjectividade que faz a sua grandeza. Um crítico objectivo, para além de não existir tal coisa, é alguém que só regista factos e isso, se faz parte, não é o todo.
E a banda desenhada, onde entra no meio disto tudo? Vou citar o próprio João Bénard da Costa a propósito de Anton Tchekov: "[...] será que em Tchekov alguma personagem é alguma vez odiosa? Não foi ele - foi Strindberg - quem disse que os homens não são maus mas também não são bons. Tchekov não seria capaz de o dizer assim com tanta rudeza. É uma surdina, surdina de maldade que acompanha todas as bondades, surdina de bondade que acompanha todas as maldades." (Crónicas: Imagens Proféticas e Outras vol. 3, 96.)
E de novo pergunto, o que é que isto tem a ver com banda desenhada? Com a má banda desenhada incensada pelos críticos da dita, tudo (pela negativa); com a boa banda desenhada geralmente desprezada pelos mesmos, tudo (pela positiva). Porque a doença que mais afecta a chamada crítica de banda desenhada é a cegueira perante o maniqueísmo. Acrescente-se a cegueira perante imagens racistas, misóginas e outras... Acrescente-se a cegueira...
Manuel Mozos, João Bénard da Costa, Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, Rosa Filmes, 2014 (trailer).