O prometido é devido e, por isso, vou retomar um dos fios narrativos da minha última entrada (fonte: Heidi MacDonald, "New Codes For Graphic Novels" [novos códigos oara os romances gráficos],
The Pulse, Janeiro de 2002).
A expressão "
graphic novel" [romance gráfico] teve um êxito que os seus promotores em 2001 provavelmente não esperavam. Talvez assim tenha sucedido porque a dita veio preencher uma necessidade real. Muitos sentiam que o nome "
comics" para a banda desenhada (termo este bem mais neutro, diga-se de passagem) estava mal aplicado. Isto por duas razões: 1) muita banda desenhada pertence a outros géneros narrativos que não o registo cómico; 2) devido a antecedentes históricos profundamente enraízados na grande maioria das consciências, a banda desenhada ("
comics") era vista como arte menor (se é que era vista sequer como arte), exclusivamente orientada para o entretenimento de menores e de quem tem menor inteligência (tudo isto em tom maior).
Não pretendo com este texto historiar o percurso do romance gráfico cujos antecedentes poderia remontar às calendas gregas (um dos meus exemplos favoritos é
este, outro é
este). O que aqui pretendo é escrever umas breves notas sobre a história recente do
boom de utilização que a expressão teve; trata-se apenas de um significante e não de um significado (não pretendo debater a polémica definição da coisa), muito menos de um qualquer referente.
Enfim, retomando o fio à meada:
Pelos motivos que já indiquei no
post anterior os editores de banda desenhada de qualidade sentiam que algo tinha de mudar num
status quo que os penalizava tremendamente. Basta ir ao blogue de Pedro Cleto e ler alguns comentários inenarráveis que por lá deixaram os integrantes da subcultura (a propósito da colecção de "novelas" gráficas do jornal
Público)
para perceber muita coisa. Eu ataco 50% dos livros, mas eles atacam-nos a todos comparando-os desfavoravelmente à série
XIII. (Este ataque à esquerda e à direita - para utilizar a metáfora política - demonstra que se ficou mais ou menos em meias tintas. Por outro lado não se percebe porque razão José de Freitas vem p'ráqui mandar vir enquanto que lá nem tuge nem muge limitando-se a prestar civilizadamente alguns esclarecimentos. Verdadeiramente hilariante é a ideia de que se trata de "livros difíceis". A subcultura classifica como "livros difíceis" tudo o que seja mais pesado do que os balões de ar que consome. Digamos: um pedaço de esferovite? Mas adiante...)
Quem prefere
XIII (ou, num contexto norte-americano,
Spider-Man, por exemplo) a
C´était la guerre des tranchées nunca investirá um cêntimo em banda desenhada de qualidade. Se considerarmos que a subcultura alimenta as lojas da especialidade (as quais criam um ambiente que atrai os seus membros - com posters e
action figures - mas que repele toda a outra possível clientela) percebe-se como os livreiros nos ditos guetos escondem o material "invendável" nas prateleiras dos fundos.
Foi neste contexto que Chris Oliveros, da editora canadiana Drawn & Quarterly, mobilizou Eric Reynolds da Fantagraphics e Peggy Burns da DC Comics para fugir à
comic shop e tentar conquistar um lugar nas livrarias generalistas. Para isso precisava de um nome genérico que servisse de sinalização do assunto nas estantes. Escusado será dizer que "
comics" estava mais do que excluido à partida. A escolha recaiu, como se sabe, em "
graphic novel".
Até prova em contrário quem inventou a expressão "
graphic novel" foi Richard Kyle (
Capa-Alpha # 2, Novembro de 1964), mas nestes primeiros anos a expressão não tinha o significado que tem hoje. Significava um misto de texto tipográfico e desenho como pode ver-se numa prancha de arte original de Archie Goodwin e Gil Kane.
Archie Goodwin (e), Gil Kane (d), Blackmark, Bantam Books, Janeiro de 1971.
A meados da década de 1970, e, sobretudo, depois do livro de Will Eisner A Contract With God and Other Tenement Stories (Baronet Books, 1978) [Um Contrato Com Deus] a expressão "graphic novel" perdeu o conceito de híbrido literatura / desenho para significar algo assim como: história ou histórias de banda desenhada autoconclusiva(s) com assunto sério e publicada(s) em livro, de preferência com lombada.
Retomando, de novo:
Os já citados Oliveros, Reynolds e Burns, juntamente com Rich Johnson (também da DC), Terry Nantier (um terço da NBM) e Art Spiegelman, que dispensa apresentações a quem não pertence ao clube
nerd, reuniram-se em 16 de Janeiro de 2002 com os representantes do BISAC (Book Industry Standards and Communication: normas e comunicação da indústria do livro). Decidiu-se então criar a etiqueta "Comics & Graphic Novels" que permite albergar várias subdivisões como se pode verificar
aqui.
É esta a solução ideal? Nem por sombras. Mas o processo conseguiu duas coisas: 1) arrumou e tornou mais visível a banda desenhada nas livrarias; 2) fez entrar nas consciências que há banda desenhada séria e a sério (o humor pertence a outra secção: Humor / Form / Comic Strips & Cartoons). Continua, no entanto, a trapalhada e podemos ver
graphic novels de Batman ao lado de
Gast ou
Here? Infelizmente sim, mas, pelo menos, em muitos cérebros essa misturada já não existe.
Gil Kane (e, d), Robert Franklin (Archie Goodwin) (e), His Name Is... Savage! # 1, Adventure House Press, Junho de 1968 (capa, com Lee Marvin como protagonista, e página 14). Não foi utilizada a expressão "graphic novel", mas (possivelmente) o redactor-chefe, Larry Koster, tinha consciência de que estava a lançar uma nova tradição ("Beginning a New Comics Tradition!"). A expressão usada foi "Illustrated Stories". É também interessante que se tenha aproximado o formato do livro ao formato dos velhos pulps.
A propósito de nomes veja-se o que escrevi no blogue The Hooded Utilitarian:
John Crosby (1912 – 1991) foi um crítico dos meios de comunicação de massas. Numa dessas circunstâncias felizes que acontecem uma vez na vida veio-me parar às mãos uma das suas colunas “Radio in Review” [a rádio em revista]. Foi publicada no jornal
New York Herald Tribune [...] e é sobre
East of Fifth [a leste da quinta [avenida]]. Perspicaz, Crosby percebeu (tal como Göethe, quando viu os desenhos de Töpffer, muitos anos antes) que o livro tinha uma forma que na altura não tinha nome: o romance gráfico [ou devo passar a utilizar a tradução errónea, "novela gráfica"?]. Eis o que ele escreveu na crónica “Radio in Review: East of Fifth, West of Superman” [a rádio em revista: a este da quinta, a oeste do super-homem] (Julho de 1948; tradução minha):
[…] East of Fifth, de Alan Dunn, um cartoonista que é também um escritor elegante e subtil, é a história de vinte e quatro horas na vida de um grande prédio da moda em Manhattan, e, claro está, dos seus ocupantes, contada com cartoons e texto a acompanhar.
Falo disto porque o livro do senhor Dunn pode muito bem ser uma forma de arte novinha em folha. Uma extensão sofisticada e literata da banda desenhada com consequências horripilantes para escritores que não sabem desenhar. Este não é o primeiro livro em que cartoons e texto contam uma história completa mas é, pelo que sei, a primeira vez que alguém tenta criar literatura séria neste campo. No mundo actual em que não se lê [se Crosby cá voltasse!], quando todas as artes e muito do jornalismo tende para a imagem, o livro de banda desenhada para adultos do senhor Dunn é certamente importante. É só um pouco inquetante e absolutamente cativante.